domingo, 30 de setembro de 2012

Tomé

Nascido em um dia frio daquela cidade tão quente, Tomé não poderia ser diferente. Teimoso tal qual menino malino que não abre mão do seu urso de pelúcia, ele recebera o nome da avó. Como o santo, Tomé só acreditava vendo, sentindo, vivendo, esgotando até a última gota. Por isso, crescera sem medo de sujar as mãos na terra e os pés no asfalto. Sem medo de perder a cabeça na lua.

Foi assim que Tomé encontrou nas palavras as cores que faltavam para enfeitar suas brincadeiras, por vezes pequenas para tanta imagem e ação. Sua teimosia contrastava com seus olhos doces e o menino nunca se deixou estancar pelo medo. Por isso, brincou de amores com a ingenuidade dos que se entregam por completo. Nessa busca, colheu flores e por vezes furou-se com os espinhos que fizeram sangrar. Mas ainda sim, nunca deixou de ver, sentir e viver, esgotando até a última gota.

Para Tomé, a vida é como brincadeira de gangorra, a preferida nos tempos da infância. O constante movimento é o que o mantém vivo. Sentir a brisa tocar seu rosto quando alcança o ponto máximo da altura o faz sorrir com tamanha vontade que dá pra sentir o entusiasmo do seu coração. Quando chega ao chão por feridas ou impossibilidades que lhe arranham a alma, coloca um fone de ouvido para sentir cada nota e traduzir em palavras as batidas descompassadas do mesmo coração, que, impaciente, não tarda a se recompor. É assim, que o menino usa os pés e toma impulso para voltar a subir. Tomé sabe muito bem que seu lugar é mesmo lá no alto.


Esse texto faz parte da série produzida para o Esquinas.
Conheça também a Li.

domingo, 16 de setembro de 2012

Se você me encontrasse hoje

Mas se você me encontrasse hoje, me reconheceria? Poderia ser uma avenida movimentada, onde as pessoas se esbarram sem se dar conta das trajetórias umas das outras, ou sequer das suas próprias. Ou em uma daquelas ruas feitas de silêncio em que passeávamos de mãos dadas e corações divididos, brincando de fazer planos ou pirraças. A gente traçava esquinas em constelações e se perguntava se havia razão naquilo tudo.

Hoje, eu me pergunto: você me reconheceria? Talvez sim. Quem sabe somente você fosse capaz de encontrar em meio à tralha, pontos finais e exclamações, aquele brilho de acreditar sem medo e com vontade no amor correspondido, na verdade das palavras, na pureza do olhar. Vai ver que lá no fundo, só você preencheria as sequências vazias de tantas interrogações e os finais de tarde em que me perguntava se havia razão naquilo tudo.

Quando viajo entre pensamentos e realidade, bem lá no fundo eu sei que só você compreenderia esses dias tumultuados em que nada parece fazer sentido, mas que são os que mais trazem os sentidos. Só você reconheceria essa minha loucura de vivê-los tão intensamente assim como os melhores dias. Aqueles em que seus braços pareciam me dizer em silêncio que nada poderia me tirar dali, que nenhum mal nos atingiria, que nenhum tempo ou distância nos dividiria. Porque havia sim razão naquilo tudo.

E se você não me reconhecesse? Ou não me reconhecesse em mim? Sufocaria o desencontro daquelas promessas, a verdade daquele encontro. Apagaria o sorriso guardado, perderia o sentido dos braços abertos, do coração à espreita. E nunca mais eu acreditaria que há razão em tudo.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Virando esquinas

O espaço em branco com fome de palavras me assusta. Nunca me dei muito bem com essas histórias de fome e comidas. Acho que nem me levam a sério quando desabafo a minha dificuldade em lembrar de comer. Passo a pensar que minha fome mesmo é de vida.

Virando esquinas, o veículo em alta velocidade carrega apenas a mim, o cobrador, um rapaz que encosta no vidro da janela com o livro aberto sobre o colo e uma moça, que mais atrás usa a mesma janela para descansar de toda a vida do dia. Penso na vida aberta diante de mim. Aqui dentro, tenho andado devagar demais para acompanhar a rapidez com que o motorista torna a encontrar outra esquina.

Parece que o tempo de imaginar o futuro passou e não existe outra hora que não seja o agora. Gente nem tão grande assim também cresce, menina. Não é mais só tirar a maquiagem, guardar a panelinha rosa, o cheque feito a mão e a pequena máquina de escrever para deixar de ser adulto e voltar a dormir criança. Hoje, o travesseiro nem sempre representa descanso. Às vezes, é o momento mais movimentado do dia e os pensamentos secam o sono na tentativa de se resolverem por si só.

Ou de se entender. A regra dos nove, as leis de Newton ou as pontes de carbono não explicam as batidas do meu coração, nem tampouco esse suceder de fases que me aceleram e me freiam. Volto a pensar que estanquei. A moça continua dormindo. O moço, absorto em sua leitura, viaja além das esquinas que o motorista apressado nos guia. Aqui dentro, ando devagar. Mas não me engano, toda essa calmaria não faz meu estilo. Puxo a corda, meu ponto é o próximo.